A linguagem é uma legislação, a língua é seu código. Não vemos o poder que reside na língua, porque esquecemos que toda língua é uma classificação, e que toda classificação é opressiva: ordo quer dizer, ao mesmo tempo, repartição e cominação. (...) Assim, por sua própria estrutura, a língua implica uma relação fatal de alienação. Falar, e com maior razão discorrer, não é comunicar, como se repete com demasiada frequência, é sujeitar: toda língua é uma reição generalizada.
Mas a língua, como desempenho de toda linguagem, não é nem reacionária, nem progressista; ela é simplesmente: fascista; pois o fascismo não é impedir de dizer, é obrigar a dizer.
Assim que ela é proferida, mesmo que na intimidade mais profunda do sujeito, a língua entra a serviço de um poder.1
Conforme disse Barthes, como nosso corpo, a linguagem é limite. As palavras não alcançam, as estruturas são rígidas e autoritárias e dependentes do senso comum. As vias de regra são retas e oblíquas, predispostas a direcionar o modo como se enunciam as coisas e o outro, com base em um universo supostamente aprendido, conhecido e, então, normatizado, para guiar e evitar o mal-entendido e promover a boa convivência.
Norma é um termo que vem do latim e significa “esquadro”. Uma norma é uma regra que deve ser respeitada e que permite ajustar determinadas condutas ou atividades. No âmbito do direito, uma norma é um preceito jurídico. [...] Para a linguística, a norma é o conjunto dos usos padrões que os falantes de uma língua (comunidade linguística) levam a cabo no dia-a-dia. Norma também é um nome pessoal feminino bastante frequente na Espanha e na América Latina. [...] É o nome em latim de uma constelação que se encontra no hemisfério celestial sul entre Escorpião e Centauro. Esquadro de Carpinteiro e Régua são outros nomes pelos quais é conhecida esta constelação cuja denominação formal é Norma e Regula.2
Artificiais como um esquadro, as normas recaem socialmente como “naturais” ou verdades, designando o que é diferente como anormal (Homo sacer). Existe aí um jogo de força, no qual o anormal vive em risco de aniquilamento por essa ordem, justificada por uma suposta “natureza” das coisas, por esse esquadro que se quer verdade, que tem uma mão que o fabrica e sustenta, mas que, de forte e aguda, pode ser trêmula ou obtusa.
Nesse universo que mira fora dos 90º, surge em 2016 o projeto Cidade Queer, cujo intuito foi propor debates e vivências para uma relação não heteronormativa (masculina, branca) com a cidade. O sentido que queer atribui à cidade nesse título é sua não heteronormatividade.
É visível cada vez mais em nosso português certos adendos que tentam qualificar – e por que não, complexificar ou até negar – termos que já não cabem em sua norma original. Assim, comumente lê-se casamento gay; casamento aberto; bolo vegano; farinha de arroz; banda de mulheres. Se em alguns anos “casamento”, apenas, abarcará as diversas possibilidades de amor e união e não apenas a relação monogâmica entre um homem e uma mulher, ainda não se sabe; até lá, o adendo será imprescindível.
Da mesma forma, o projeto Cidade Queer se colocou no mundo trazendo um adendo que procura desnormatizar a ideia de cidade. Um projeto chamado Cidade comunicaria outra ideia. Porém, diferentemente dos exemplos acima, talvez não seja tão clara qual a qualidade que queer traz para esta cidade.
Ao que tudo indica, queer é um termo que chegou ao Brasil de avião, pousando no meio acadêmico, em simpósios, na antropologia, nas artes visuais. Mas o que essa palavra, sendo ela um estrangeirismo, enuncia? Cabe lembrar que, antes de encontrar o significado das palavras, no Brasil tem-se a tradição de engoli-las pelo seu significante com facilidade – somos extremamente “adaptáveis” ao som de fora.3
No caso de queer, não foi diferente. Sua origem está na língua inglesa e seu significado e significante foram se alterando com o passar do tempo, sendo hoje um conceito internacional, presente na sigla lgbtqia, e também um adjetivo da indústria cultural (como no programa Queer Eye for a Straight Guy). Se estou num país onde se fala a língua inglesa e digo que alguém é queer, está no limite do claro. Porém, no Brasil, o que queer nominaria? Há algo desconhecido, que agora apontaremos como queer?4 Seria possível, então, traduzir a palavra? Barbarizá-la? Atribuir-lhe uma forma? Como fazer isso sem normatizá-la?
No universo dessas questões, e conscientes de que se produziria um livro do programa, surgiu o Laboratório Gráfico Desviante. Seu intuito foi investigar, coletivamente, possibilidades de significado, significante, formais, de criação de léxico, além de problematizar a representação visual em torno do queer.
Foram quatro encontros, de aproximadamente três horas cada, para discutir e estudar problemas em torno da ideia de desnormatização e queer na linguagem visual e escrita. O princípio mais importante do LGD é não estabelecer novos paradigmas, ou seja, não achar que se resolve-se um problema criando uma nova estrutura, pois essa será tão normativa como quanto a anterior.
O primeiro eixo de discussão foi a possibilidade de tradução de queer. A partir do que encontramos no dicionário Oxford, remontamos à história do Brasil buscando palavras vizinhas que poderiam ser analógicas à ideia de queer. O objetivo não era traduzir, mas gerar um universo léxico em torno do conceito.
Assimilando que esse léxico é cambiante e que também o é a forma de escrevê-lo – queer, cuír, kuir –, Thiago Hersan, artista e programador, desenvolveu um plug-in que modifica a palavra queer (quando ela aparece em alguma página da internet) a cada atualização para suas vizinhas.
A questão do gênero na língua portuguesa – e línguas latinas em geral –, seja na predominância do masculino no plural ou em sua presença em todas as coisas – substantivos –, apresentou-se, de início, como uma questão insuperável. Experimentando com esse problema, Fabio Morais reescreveu o Manifesto ciborgue de Danna Haraway em duas versões: uma com palavras masculinas e outra com femininas. A questão do limite entre o que se diz e como se diz foi uma discussão importante: é possível uma publicação feminista ter uma linguagem patriarcal como base? Somo todos feministas ou todas feministas? A necessidade de fala é maior do que a subversão da forma? Qual a medida entre essas duas coisas?
Ainda nesse embate, foram discutidos os limites do uso do “x” ou do “@” como solução para abarcar todos os gêneros, e como seria possível, na rigidez de nosso alfabeto e léxico, subverter a questão do gênero.
Assim foi questionado o que seria uma vogal queer, que funde “a”, “e”, “o”, deixando em aberto o gênero grafado, mas possibilitando leitura (diferentemente do “x” ou do “@”, que brecam e descontinuam o texto). A forma é intrínseca ao conteúdo, pois sempre teremos que escolher uma tipografia, e essa tipografia é carregada de história (quem são os tipógrafos das fontes que mais usamos, qual sua história?), mesmo que se opte por uma “neutralidade”. Questionou-se qual seria esse vocabulário formal relacionado a queer, quais cores e tipografias estavam a ela associadas. E, para evitar a formação de uma nova normatividade, no processo de criação da vogal queer optou-se por subverter fontes populares, massificadas e tidas como padrões, a Times New Roman e a Arial, e não desenvolver desde o início uma nova família tipográfica.
Uma proposta de vogal queer foi desenhada, por Laura Daviña, a partir de experimentos com recortes de caracteres retirados de uma base de estêncil. Nesta técnica os glifos da fonte são recortados previamente, sendo gerados fragmentos de letras que foram manipulados a fim de formar diferentes combinações.
Como a ideia era criar uma tipografia que pudesse ser usada nos experimentos textuais do laboratório, partiu-se para a interferência nos caracteres a partir dos arquivos digitais das fontes bases (Arial e Times New Roman). Os glifos das vogais foram vetorizados e recortados na mesma lógica do estêncil, e em seguida encaixados de diferentes maneiras. Na variante que gerou a família Cuir Roman Times, os glifos “a”, “e” são fragmentados e suas partes invertiras e reorganizadas para formar as vogais degeneradas. Na identificação dos caracteres no mapeamento da tipografia, os glifos “e”, “a” foram apontados como caracteres que pudessem ser lidos como os originais “e”, “a”, “o”.
Num ensaio de 1919, Freud fala sobre “Das Unheimliche” – The Uncanny em inglês, ainda não publicado em português, mas muitas vezes traduzido como estranho, inquietante –, um conceito que se refere a algo que não é propriamente misterioso, mas sim estranhamente familiar, suscitando angústia, confusão e estranhamento – ou mesmo terror. O Uncanny nos pareceu pertinente como a reação do mundo normativo ante o queer.
Fizemos então um exercício de mistura das frases de Freud, retirando o uncanny e deixando uma lacuna com o léxico de palavras associadas a queer ao fundo:
Podemos reunir todas aquelas propriedades de pessoas, coisas, impressões sensórias, experiências e situações que despertam em nós o sentimento de estranheza, e inferir, então, a natureza desconhecida do ___________ a partir de tudo o que esses exemplos têm em comum.
Os dicionários que consultamos nada de novo nos dizem, talvez porque nós próprios falamos uma língua que é estrangeira. De fato, temos a impressão de que muitas línguas não têm palavra para essa nuança particular do que é ___________ .
O animismo, a magia e a bruxaria, a onipotência dos pensamentos, a atitude de homem para com a morte, a repetição involuntária e o complexo de castração compreendem praticamente todos os fatores que transformam algo assustador em algo ___________.
Um segundo exercício foi interferir em frases do artista Vito Acconci, em que ele fala sobre performatividade na escrita e na cidade, e sobrepô-las a um grid tortuoso, retirado da cidade de São Paulo.
A interação entre a tipografia e mapa da cidade de São Paulo foi explorada também na proposição de Laura Daviña e Thiago Hersan para ocupação da fachada/muro da Explode!, uma imersão-residência de onze dias (entre agosto e setembro de 2016), em uma casa na Zona Leste de São Paulo, localizada na Vila Nova York. A arte dos cartazes foi influenciada pelo trabalho de Irmã Corita como uma homenagem da residência.
clique nos links abaixo para fazer o download das fontes:
Cuir Roman Times
Desvarial
[1] BARTES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, [s.d.].
[2] Disponível em https://conceito.de/norma.
[3] São muitos os exemplos, desde o forró (que pode ter vindo de forbodó, ou do francês faux-boudon ou do inglês for all) a Black Friday, off, sale, hambúrguer, abajur.
[4] Ver no livro Cidade Queer, uma leitora os textos “Algumas reflexões pessoais sobre a descolonização da queer”, de Vi Grunvald, e “No olho do cu(ir) – queer: centro e margens de uma palavra desgastada”, de Bibi Campos Leal.